Prólogo
A Baleia que Engoliu
um Espanhol
Marco Neves
Prólogo
A Baleia que Engoliu um Espanhol
Marco Neves
Um esqueleto na madrugada
Caiu-me ao colo uma história que está mesmo a pedir para ser transformada num daqueles livros exagerados e tremendos, com tesouros, espadas e gente escondida numa esquina — ah, e uma baleia!
Calhou-me na rifa logo a mim, que sempre quis escrever um folhetim. Não um romance, uma novela ou um conto, mas precisamente um folhetim, com mortos, pancada, segredos e amores delirantes. Nunca tive tempo ou desculpa — ou assunto, para dizer a verdade.
Até hoje.
Deixo-vos então com a história que começou numa noite de fim de ano e que me levou a descobrir o que andaram a fazer por estes lados, há muitos anos, Júlio César, Francis Drake, pilotos ingleses, agentes nazis — e tantos outros.

Marco Neves

Um telefonema à meia-noite
«10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1 — Feliz Ano Novo!»
À beira da praia, naquele hotel do Algarve, todos gritávamos, felizes por alguns segundos, de copo na mão e passas na boca.
À luz dos primeiros foguetes no céu, a Rita e eu beijámo-nos, tentando arrumar as passas na boca, numa atrapalhação de línguas, narizes e risos. Senti uma vibração no bolso, mas não liguei. Fechei os olhos por um segundo e, quando voltei a abri-los, vi o fogo reflectido nos olhos da minha namorada e nas bolhas do champanhe que ela bebia.
Senti o telefone a vibrar de novo. Era a minha mãe, quase de certeza. Tirei o aparelho do bolso e percebi que era um número desconhecido.
— Estranho...
Atendi e ouvi uma voz arrastada, com restos de sotaque de Peniche:
«Duarte Contreiras?»
— Sim, sou eu.
«Não imaginas como foi difícil encontrar o teu número…»
A Rita olhava para mim, tentando adivinhar a conversa pelos trejeitos da minha cara. Tinha de fazer um esforço para perceber a voz do homem, no meio da ruidosa alegria dos primeiros minutos do ano.
— Quem fala?
«O meu nome é Pedro Garcia. Sou um amigo de infância do teu avô Mário Contreiras.»
Senti um baque. O meu avô morrera há quase vinte anos, mas ainda hoje tenho saudades de o ouvir a contar-me histórias. A voz continuou:
«Há vinte e cinco anos que estou à espera deste momento. O teu avô fez-me guardar um envelope para to entregar, mas só em 2017.»
Calou-se por momentos. Tinha a respiração agitada.
«Não consegui esperar mais do que uns segundos. Há décadas que quero descobrir aquilo que está neste envelope.»
Eu estava de boca aberta. Seria alguém a gozar? Lembrei-me das velhas histórias do meu avô e da última discussão que tivemos, antes de ele morrer.
O homem continuou:
«Logo que possas, vem ter comigo. Quando passo com os dedos, parece-me uma chave... Sempre quis saber onde está o tesouro e tenho quase a certeza de que o teu avô o encontrou...»
O fogo de artifício, entretanto, tinha acabado. Olhei para a Rita, que me perguntava só com os lábios:
— Mas quem é?
Fiz-lhe um gesto para que esperasse.
Se isto tivesse acontecido a qualquer outra pessoa, acredito que desligasse o telefone convencido de que era uma partida de mau gosto.
Mas a verdade é que o meu avô tinha passado a vida a contar-me histórias dum tesouro. Acabei por dizer:
— Posso ir ter consigo agora?
A Rita abriu a boca de espanto, fez que não com a cabeça e desatou a dizer em voz alta, já um pouco zangada:
— Ainda temos mais dois dias marcados! Não podemos sair daqui assim...
Fiz-lhe sinal que esperasse. Ao telefone, o homem dizia-me:
«Vivo no Baleal. Vem cá ter depressa.»
— No Baleal? — Olhei para o relógio no pulso e disse, para desespero da Rita: — Então, daqui a umas quatro horas estou aí. Pode dizer-me a morada exacta?
Pedi o telemóvel à Rita, que mo deu de cara franzida, sem perceber que razão podia eu ter para combinar fosse o que fosse para as quatro da manhã do dia 1 de Janeiro.
Apontei a morada e despedi-me:
— Então, até logo!
«Até logo!»
E desligámos.
— Podes explicar-me o que raio se passa? Onde é que tu queres ir? Não sabes que temos quarto até dia 3?
— Rita, confia em mim: tu queres vir comigo. Não é todos os dias que se recebe uma herança!
— Uma herança? Mas que herança?
— Lembras-te de te falar do meu avô e daquelas histórias todas dum tesouro escondido lá em Peniche?
— Sim, lembro-me.
— Bem, acho que vou descobrir onde está esse tesouro.
Ela riu-se:
— Então é desta que me levas à tua terra?
Sim, é verdade: nunca tinha levado a minha namorada a Peniche. Imperdoável, eu sei. Mas aquele era o dia — logo o primeiro do ano. Mal sabia ela o que a esperava nessa terra onde nunca fora.

*


Contar aventuras não é difícil — mas descrever uma viagem de auto-estrada do Algarve a Peniche? Durante a noite? O que posso eu fazer? Talvez relatar a lenta progressão do conta-quilómetros? Informar o leitor de que fizemos a viagem e pronto?
Ali por alturas da estação de serviço de Grândola, virei-me para a Rita:
— Desculpa não ficarmos o resto dos dias...
Ela encolheu os ombros:
— Não faz mal, desde que encontremos o tal tesouro — e riu-se incrédula com o que tinha acabado de dizer.
Já eu senti um calafrio na espinha. Seguramente, não ia encontrar tesouro nenhum. Não sou muito dado a acreditar nestas aventuras — mas, por outro lado, tinha quase a certeza de que o meu avô me deixara qualquer coisa e estava cheio de vontade de abrir o envelope e ler as palavras dele.
Talvez fosse a adrenalina da viagem imprevista ou a expectativa do tesouro que nos esperava, mas o resto da viagem continuou em boa-disposição. Falámos das histórias do meu avô, imaginámos mil aventuras num delírio saboroso — e assim se passaram as horas numa daquelas raras conversas de namorados em que tudo vale e a vida até parece uma aventura.
Mas também é verdade que a noite é longa e os quilómetros pesam, por mais tesouros que nos esperem. Quando chegámos à saída da A8 com a placa a indicar «Peniche», já pouco falávamos. O som do pisca-pisca pontuava o sono cortado pela ansiedade.
Saímos na Serra d’El-Rei, em direcção ao Baleal.
Logo à saída da Serra, a Rita levantou os olhos, admirada. No horizonte, à nossa esquerda, víamos uma névoa de luzes penduradas no mar.
— Que cidade é aquela?
— Peniche. Se olhares com atenção, consegues ver, lá muito ao fundo, o farol das Berlengas...
Minutos depois, chegámos ao Baleal, estacionámos e atravessámos a pé a língua de areia que liga a antiga ilha ao continente.
— Nunca me disseste que isto era assim tão...
— Tão quê?
— Não sei... Tão interessante. Aquelas são casas de pescadores?
— Não, não. São casas de gente de fora, que vem aqui passar férias.
Pelo areal, havia grupos de jovens a conversar em calmarias pós-alcoólicas. Um casal estava deitado, a olhar para as estrelas, de mãos dadas. Mais ao fundo, dois homens entravam pelo mar, num banho inaugural que devia ser tão agradável como facas — afinal, das nossas bocas saíam vapores do frio que estava.

*


A casa de Pedro Garcia escondia-se numa das pequenas travessas que atravessam o casario apertado do Baleal. Como se estivesse à nossa espera atrás da porta, o homem apareceu-nos ao primeiro toque da campainha.
Era um velho com mais de 90 anos, mas que mesmo assim tinha um ar alegre e um brilho entusiasmado nos olhos. Não precisou de perguntar fosse o que fosse para saber que era eu e deu-me um abraço atrapalhado. Estava quase a chorar.
— Eu era um dos melhores amigos do teu avô... Ele nunca falou de mim?
Fiz um gesto ambíguo. A verdade é que nunca tinha ouvido o nome dele — mas também sei que muitas das histórias do meu avô ficaram por contar.
— Esta é a minha namorada, Rita.
Entrámos e acompanhámos o velhote até um pequeno escritório com vista para o mar. Agora precisava de muito mais talento do que aquele que me calhou em sorte para conseguir descrever o cheiro daquela sala. Era o aroma da madeira queimada, com um travo de livros e ainda o perfume do chá que Pedro Garcia tinha preparado minutos antes, num cálculo certeiro da duração da viagem entre o Algarve e o Baleal.
Sentámo-nos num sofá, enquanto o homem nos servia o chá com simpatia.
— Quando tivermos tempo, tenho de te contar as histórias do teu avô!
Sorri enquanto bebia o chá e espreitava as paredes forradas de livros.
— Teremos tempo. Agora gostava de ver esse tal envelope... Vim do Algarve só para isso!
— Sim, claro. Há anos que espero por este momento. — Num gesto solene, entregou-me o envelope acastanhado, com o meu nome escrito num estilo que já não se usa. — Desde que o teu avô me deu esta missão que me interrogo sobre o que está aqui dentro.
Ficámos em silêncio. O velho limpava as lágrimas com um lenço de pano.
— O teu avô Mário confiou em mim para te entregar esta herança. É uma honra cumprir a promessa que fiz ao meu melhor amigo.
Passei a mão pelo envelope, tentando sentir as décadas que me separavam do momento em que o meu avô o fechara. Olhei para os livros pesados e solenes que nos rodeavam. Olhei para a cara ansiosa do velho. Olhei para a Rita, que estava tão curiosa como eu.
Num gesto menos cuidadoso do que a idade do papel aconselharia, abri por fim o sobrescrito.
Encontrei uma chave e uma fotografia amarelada que me deixou com o coração aos saltos.
O que era aquilo? O que é que o meu avô tinha feito?
Um homem amordaçado
Não sabia o que pensar daquela foto. Fiquei a olhar uns minutos e, depois, entreguei-a à Rita, que ficou tão baralhada como eu. Com um gesto desconfiado, passou a foto ao velho, que abriu a boca, lívido. Todo o entusiasmo que sentira ao nos ver desaparecera. Sentou-se com dificuldade e pôs as mãos na cabeça, deixando cair a foto. Apanhei-a do chão e olhei com mais atenção.
Era uma fotografia de três homens à entrada duma gruta. Dois estavam em pé. Um deles, o meu avô, parecia imperturbável, nem triste nem contente. O outro, muito alto, sorria, feliz, como um caçador a mostrar a sua presa.
O terceiro, vestido de nazi, estava de joelhos.
Tinha uma mordaça na boca e as mãos atadas.
Na cara via-se bem o terror que sentia.
Virei a fotografia e vi que, no verso, alguém desenhara um pequeno mapa com uma seta a apontar para uma floresta a sul da Atouguia da Baleia. Por baixo, havia uma mensagem:
«Duarte, quero contar-te outra das minhas histórias e confessar-te um segredo. Foi o meu maior pecado e talvez o meu maior orgulho. Procura o baú que está na gruta assinalada no mapa. Assim ficarás a saber onde está o tesouro de que sempre te falei. Um tesouro que este nazi que aqui vês tentou roubar e nós não deixámos.»
A seguir, noutra letra, entre aspas, aparecia uma nova frase: «Guardei o segredo na cabeça e o mapa na minha mão.»
Olhei para Pedro Garcia, que continuava com as mãos na cabeça.
— Diga-me. O que é isto?
Devagar, revelou os olhos com lágrimas e apontou para a foto:
— Isso... — e calou-se de novo.
Com os nervos à flor da pele e a adrenalina nas veias, não me contive e gritei:
— Diga-me quem são estes!
O velho tentou levantar-se.
— Desculpem, não me estou a sentir bem.
As mãos tremiam e deixou cair a bengala a que se tentava segurar. A Rita não conseguiu impedir que ele caísse de joelhos no chão, a chorar.
— Nunca pensei que o teu avô fizesse uma coisa dessas. Jurámos segredo! Fi-lo prometer que queimava a foto... Nem sei por que razão a tirámos... Foi aquele inglês maldito...
Sentou-se de novo no sofá. Pus-lhe a foto à frente dos olhos e, como implacável interrogador num qualquer filme de polícias, disparei:
— Quem são estes?
— Bem, este — disse o velho devagar, apontando para um dos homens que rodeavam o nazi — acho que sabes quem é.
Com os nervos à flor da pele e a adrenalina nas veias, não me contive e gritei:
— Diga-me quem são estes!
O velho tentou levantar-se.
— Desculpem, não me estou a sentir bem.
As mãos tremiam e deixou cair a bengala a que se tentava segurar. A Rita não conseguiu impedir que ele caísse de joelhos no chão, a chorar.
— Nunca pensei que o teu avô fizesse uma coisa dessas. Jurámos segredo! Fi-lo prometer que queimava a foto... Nem sei por que razão a tirámos... Foi aquele inglês maldito...
Sentou-se de novo no sofá. Pus-lhe a foto à frente dos olhos e, como implacável interrogador num qualquer filme de polícias, disparei:
— Quem são estes?
— Bem, este — disse o velho devagar, apontando para um dos homens que rodeavam o nazi — acho que sabes quem é.
— Sim, é o meu avô. E este?
O velho abanou lentamente a cabeça e não disse nada. Continuei:
— E o nazi?
— O meu problema, Duarte... O meu problema é a quarta pessoa desta foto…
— A quarta pessoa? — perguntou a Rita.
— Sim. Aquele que está por trás da máquina. Fui eu que tirei a foto. Nunca me arrependi tanto de alguma coisa como de ter tirado esta foto. E de ter participado naquilo.
— Aquilo o quê?
Calou-se de novo.
— Perguntem ao inglês. A culpa é dele.
— Ao inglês? Mas qual inglês?
Ficámos em silêncio a ouvir os soluços do homem, até que este se decidiu a responder:
— John Clarke. Deu-me cabo do sono para o resto da vida.
Olhei pela janela para as luzes da minha terra, onde já não vivia há tanto tempo... Aquele nome lembrava-me velhas histórias que ouvira há muito tempo da boca do meu avô.
Não sabia o que pensar. A fotografia perturbava-me, pois sempre associara o avô Mário a histórias infantis, algumas delas violentas, sem dúvida, mas daquela violência quase abstracta de duelos de espadachins, em que ninguém se aleija e ninguém morre — e ninguém está amordaçado e com ar aterrorizado aos pés de dois homens com ar de vitória cruel. E havia ainda isto: na foto, o meu avô tinha uma arma apontada à cabeça do nazi.
Tinha de tirar toda aquela história a limpo — até porque também queria saber se havia um tesouro ou não...
Virei a fotografia ao contrário e apontei para o X.
— Onde será isto?
Pedro Garcia olhou para a fotografia com ar de quem já não se importava com nada...
— É o Planalto das Cesaredas... Foi aí que matámos o nazi.
— E foi aí que o meu avô escondeu o tesouro?
— Não sei.

*


Pedro Garcia ficou em casa, sozinho, a beber chá e a pensar nos seus pecados, enquanto eu e a Rita seguimos para as Cesaredas em silêncio.
Não foi fácil encontrar a gruta: o mapa era muito impreciso e só quando o sol já estava a aparecer por entre as folhagens, encontrámos a entrada, junto às árvores que apareciam na fotografia.
Para o lado do mar, víamos Peniche a surgir do escuro do mar — e foi à luz da primeira manhã do ano que entrei com a minha namorada numa gruta onde nos esperava um tesouro. À luz tosca do telemóvel, vimos as estalactites e as estalagmites daquela catedral.
Os nossos pés escorregavam no musgo das rochas e a Rita teve de se agarrar ao meu braço.
— Não estou a ver nenhum tesouro...
Ouvimos um ruído de algo a rastejar.
— O que foi isto?
— Não sei — disse ela — mas está ali qualquer coisa.
Vimos um diamante desenhado numa rocha diferente das outras, como se tivesse sido transportada para ali. Com dificuldade, afastámo-la e encontrámos três velhas tábuas meio desfeitas, que partimos numa nuvem de pó. Respirávamos descontroladamente.
Nos filmes, estas cenas parecem mais fáceis — e sujam menos. Gastámos suor e músculo, mas, por fim, tínhamos a arca à nossa frente, mal iluminada pelo telemóvel.
Ao enxugar o suor, a Rita sujou a cara de terra e eu ri-me.
— O que foi?
— Fica-te bem esse ar de aventureira.
A minha aventureira apontou então para a arca e perguntou:
— Então, vamos lá descobrir que tesouro é este?
Senti um arrepio. Não seria, certamente, um tesouro aquilo que iríamos encontrar ao abrir a tampa.
Ouvia o meu sangue a pulsar nos ouvidos.
Enfiei a chave na fechadura, enquanto a Rita apontava o feixe de luz.
Quando, por fim, ergui a tampa, demos um grito que ecoou pelas paredes da caverna.
O que estava dentro do baú era um esqueleto.

*


Depois do choque inicial, a Rita aproximou-se do esqueleto, enquanto eu apontava a lanterna do telefone para ver melhor o tesouro mais macabro de todos os tempos.
O feixe de luz passou pela caveira, ali perfeita num riso eterno, e desligou-se logo de seguida, pregando-nos mais um susto.
A bateria tinha acabado. Foi com as mãos a tremer que a Rita procurou o telefone.
— Liga este, agora.
Aproximámo-nos mais uma vez do morto:
— Olha, tem uns fiapos de roupa…
Atrevi-me a tocar nos restos de tecido e percebi que aquilo era um velho uniforme alemão da II Guerra Mundial. O tesouro do meu avô era, pelos vistos, um nazi morto.
— Olha, o esqueleto tem qualquer coisa na mão…
O nazi segurava uma pequena bolsa de couro. Tentei, com cuidado, removê-la por entre as falanges brancas, mas foi difícil. Acabei por partir um dos dedos do morto e, pela caverna, ouvimos um eco de ossos a chocalhar.
A Rita apertou-me o braço.
Dentro da pequena bolsa, estava um mapa antigo.
— Outro mapa?
Numa folha branca, alguém desenhara um arquipélago. Numa das pontas da maior das ilhas, estava desenhada uma casa com a legenda, em letras pequeninas: «Casa Encarnada». Ao lado da casa, aparecia um avião.
No cimo da folha, havia um sol imenso, donde partiam dez raios que percorriam a folha em várias diagonais, atravessando as três ilhas do arquipélago.
— Que ilhas são estas?
— Bem, a maior é Peniche.
— Mas Peniche é uma ilha?
— Não é, mas já foi.
Foi então que ouvimos uma gota a cair no chão e demos novo salto. Deixei cair o telemóvel, que se desligou — e assim ficámos às escuras, numa caverna, com um esqueleto de um nazi.
A Casa Encarnada
Saímos da gruta, sujos e cansados, e entrámos no carro. Olhámos com mais atenção para o mapa que encontráramos na mão do esqueleto.
— «Casa Encarnada»... Eu sei onde é! Vivi ali perto muitos anos.
Arrancámos com um chiar impaciente dos pneus. Pouco depois, estacionámos ao lado da tal casa, à beira da Marginal Sul.
Saímos do carro. Aproximámo-nos da casa. Parecia fechada, com janelas pintadas de branco e a tinta a cair junto ao telhado. Já o encarnado das paredes, esse, continuava tão intenso como me lembrava das vezes que por ali passei, de bicicleta, na minha infância.
Tocámos à campainha. Ouvimos passos a aproximarem-se e, quando a porta se abriu, tive a certeza: aquele era o mítico inglês das histórias do meu avô.
— John Clarke?
— Sim, sou eu.
— O meu nome é Duarte, sou neto do Mário Contreiras. Sempre pensei que «John Clarke» fosse um nome inventado.
O inglês sorriu e abriu os braços para me abraçar:
— Há muito tempo que espero a tua visita... O Mário avisou-me que um dia havias de me tocar à porta. E, sim, o meu nome é mesmo John Clarke.

*


Nem três horas tinham passado desde que encontráramos o nazi. Estávamos agora ao sol, longe da caverna, sem terra na cara — e bem mais descontraídos.
Tomávamos o pequeno-almoço numa varanda da Casa Encarnada, donde se vê a baía a sul de Peniche, a estrada que acompanha as falésias até ao Cabo Carvoeiro – e, olhando em frente, a costa até à Ericeira.
A Rita estava a ver tudo aquilo pela primeira vez, enquanto eu ouvia o homem grande de sotaque inglês que estava sentado entre nós.
— O Pedro... Nunca me perdoou. Mas ele devia orgulhar-se do que fez. Claro que matámos o alemão... Querias o quê? Estávamos em guerra... Bem, pelo menos eu estava em guerra.
E riu-se, bem-disposto.
— Mas mataram-no porquê?
O inglês olhou para mim:
— Tem de ser o teu avô a contar-te.
Franzi os olhos...
— Isso é alguma brincadeira de mau gosto?
— Não, não, já explico. Vamos lá acabar de comer com calma.
Mas calma era coisa que eu não tinha naquele dia.

*


Pouco depois, o inglês levou-nos ao sótão da casa, onde encontrei, maravilhado, a biblioteca desaparecida do avô. Mordi o lábio, comovido, e a Rita deu-me a mão.
Aproximei-me então da janela que dava para o pátio interior da casa e abri a boca de espanto.
Ali estava o avião — o avião que o avô vira a cair há muitos anos, num pinhal perto da praia.
John Clarke sorriu:
— Estes livros são teus. E ainda isto... — deu-me um envelope grosso, que abri rapidamente. Lá dentro, encontrei uma velha cassete VHS.
— O que é isto?
— A última história do teu avô. Vais ouvir pela voz dele porque matámos aquele nazi. Se tiveres sorte, também te diz onde está o tal tesouro… — e piscou-me o olho com uma matreirice antiga.
Pus a cassete no vídeo que ali estava, à minha espera, e comecei a ouvir o meu avô a contar a última história do Tesouro de Saturno.
A última história do meu avô... Não me lembro muito bem qual foi a primeira das histórias que o avô me contou — talvez a da baleia que engoliu um espanhol; ou, o que é mais provável, o relato obscuro que ele me contou há muitos, muitos anos, sobre nazis e ingleses perdidos numa floresta.
A floresta, vim a saber depois, mais não era do que um pinhal nas Cesaredas — mas, para a minha imaginação de criança, esse pinhal em que nazis e ingleses se escondiam, entre as árvores, numa corrida de morte, era um bosque mítico.
Essa história começava com o meu avô a percorrer a praia da Consolação e a ver um avião de guerra inglês a aproximar-se até passar mesmo por cima da cabeça dele, num som metálico de motores em esforço.
O avô contou-me essa história baixinho, depois de jantar, comigo sentado aos pés dele, enquanto o resto da família via televisão. A minha mãe, quando ouviu falar de armas e nazis, ficou assustada e perguntou que história era aquela.
Ele riu-se, afagou-me o cabelo e disse:
— Estou a contar a «História dos Três Porquinhos» aqui ao Duarte.
A minha mãe franziu os olhos e ele continuou, baixinho, a contar como tinha entrado na guerra, há muitos anos...
Eu teria uns cinco anos: não me lembro de quase nada. Sei que foi a primeira vez que ouvi falar do tesouro. Anos depois, já eu era um adolescente borbulhoso, o avô contou-me a história de novo. Mas como eu já não podia ou não queria estar sentado aos pés dele a ouvir uma história sussurrada, o que o avô contava, à mesa do jantar, era uma versão censurada, sem mortos nem perseguições.
A história agora era quase uma anedota, sobre o dia em que dois aviadores ingleses foram levados por gente da Atouguia até um café de Peniche depois de o seu avião se ter despenhado. Nesse café, todos tentaram ajudar... Mas foi o louco da terra que, de passagem, adivinhou o que os ingleses queriam, como se a loucura ajudasse a perceber todas as línguas do mundo.
Hei-de chegar a essa história de nazis e ingleses numa floresta. Mas agora que tento recordar-me de todas as histórias que o meu avô me contou, talvez seja melhor começar pelo princípio. Tudo começou há muito tempo, no tempo dos Romanos...

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