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Pouco depois, o inglês levou-nos ao sótão da casa, onde encontrei, maravilhado, a biblioteca desaparecida do avô. Mordi o lábio, comovido, e a Rita deu-me a mão.
Aproximei-me então da janela que dava para o pátio interior da casa e abri a boca de espanto.
Ali estava o avião — o avião que o avô vira a cair há muitos anos, num pinhal perto da praia.
John Clarke sorriu:
— Estes livros são teus. E ainda isto... — deu-me um envelope grosso, que abri rapidamente. Lá dentro, encontrei uma velha cassete VHS.
— O que é isto?
— A última história do teu avô. Vais ouvir pela voz dele porque matámos aquele nazi. Se tiveres sorte, também te diz onde está o tal tesouro… — e piscou-me o olho com uma matreirice antiga.
Pus a cassete no vídeo que ali estava, à minha espera, e comecei a ouvir o meu avô a contar a última história do Tesouro de Saturno.
A última história do meu avô... Não me lembro muito bem qual foi a primeira das histórias que o avô me contou — talvez a da baleia que engoliu um espanhol; ou, o que é mais provável, o relato obscuro que ele me contou há muitos, muitos anos, sobre nazis e ingleses perdidos numa floresta.
A floresta, vim a saber depois, mais não era do que um pinhal nas Cesaredas — mas, para a minha imaginação de criança, esse pinhal em que nazis e ingleses se escondiam, entre as árvores, numa corrida de morte, era um bosque mítico.
Essa história começava com o meu avô a percorrer a praia da Consolação e a ver um avião de guerra inglês a aproximar-se até passar mesmo por cima da cabeça dele, num som metálico de motores em esforço.
O avô contou-me essa história baixinho, depois de jantar, comigo sentado aos pés dele, enquanto o resto da família via televisão. A minha mãe, quando ouviu falar de armas e nazis, ficou assustada e perguntou que história era aquela.
Ele riu-se, afagou-me o cabelo e disse:
— Estou a contar a «História dos Três Porquinhos» aqui ao Duarte.
A minha mãe franziu os olhos e ele continuou, baixinho, a contar como tinha entrado na guerra, há muitos anos...
Eu teria uns cinco anos: não me lembro de quase nada. Sei que foi a primeira vez que ouvi falar do tesouro. Anos depois, já eu era um adolescente borbulhoso, o avô contou-me a história de novo. Mas como eu já não podia ou não queria estar sentado aos pés dele a ouvir uma história sussurrada, o que o avô contava, à mesa do jantar, era uma versão censurada, sem mortos nem perseguições.
A história agora era quase uma anedota, sobre o dia em que dois aviadores ingleses foram levados por gente da Atouguia até um café de Peniche depois de o seu avião se ter despenhado. Nesse café, todos tentaram ajudar... Mas foi o louco da terra que, de passagem, adivinhou o que os ingleses queriam, como se a loucura ajudasse a perceber todas as línguas do mundo.
Hei-de chegar a essa história de nazis e ingleses numa floresta. Mas agora que tento recordar-me de todas as histórias que o meu avô me contou, talvez seja melhor começar pelo princípio. Tudo começou há muito tempo, no tempo dos Romanos...