Peniche — Ilha do Tesouro

História de um livro em cinco anos e dez segundos

Os livros também são como as cerejas. Mas para contar esta história, tenho de começar não num livro, mas numa festa. A festa de passagem de ano de 2015 para 2016.
Marco Neves
O contador das aventuras

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Os livros também são como as cerejas. Mas para contar esta história, tenho de começar não num livro, mas numa festa. A festa de passagem de ano de 2015 para 2016. Por esses dias, andava a cair num vício de difícil cura: escrevia muitas vezes (mesmo muitas) num blogue sobre línguas (e outras manias). O título agora não interessa, mas ele ainda existe. Pois bem, nessa noite de passagem de ano, algures à beira-mar assim como quem vai para sul, enquanto a gente à minha volta contava os números de trás para a frente à espera da excitação do 0 e eu enfiava atrapalhadas passas na boca (deixar cair uvas encarquilhadas no chão dá azar, como se sabe) — decidi-me. Aquele Ano Novo de 2016 haveria de ser o ano em que, finalmente, publicaria um livro. Afinal, sempre gostei de escrever, já escrevia muito, já tinha o filho, tenho ideia vaga de ter plantado uma árvore na Primária. Já só faltava o livro (e plantar mais umas quantas árvores para compensar). Ainda por cima, recebia de vez em quando mensagens de leitores do tal blogue a dizer que gostavam de ler os meus textos, sim senhor, mas eu escrevia que me desunhava… Não dava para pôr aqueles lençóis de texto em papel? Sempre era mais fácil e agradável.

Juntei os melhores textos do tal blogue e lancei pelo éter propostas a editores. Um deles, por alguma razão que só os deuses conhecem, achou que valia a pena. Manuel S. Fonseca decidiu, estava decidido: tínhamos livro! Nem demorou muito: em Abril desse mesmo ano, ainda os sons da festa de final de ano ecoavam nos meus ouvidos, já o livro estava cá fora. Tratava de segredos e da nossa língua e até contava umas histórias sobre palavras da minha terra.

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Ora — e aqui entra a primeira cereja — embalado nesse primeiro livro, o editor queria mais. Já não uma junção de textos, mas uma história como deve ser. Uma história daquelas que começa há muito tempo e vem por aí fora a contar tudo o que se passou, entre imaginação e realidade, num cozido que agradasse aos leitores (que é para isso que um editor não dorme à noite).
Assim foi: peguei no meu tema de eleição — a língua — e cozi num forno histórias de romanos e celtas, portugueses e galegos, poetas e piratas (acho que tinha piratas, mas não tenho a certeza). No fim, juntámos um título que não lembrava ao diabo: era uma Incrível História que ainda por cima era Secreta. Um folhetim, portanto. Era uma história real, mas com muita ficção pelo meio.
O livro foi escrito na segunda metade de 2016, devagar, devagarinho. Entretanto, veio uma nova passagem de ano e tive aquela rara experiência de olhar para trás e pensar: olha, consegui cumprir a promessa de fim de ano... (O truque, claro está, é fazer só uma; uma pessoa consegue publicar um livro ou emagrecer; as duas coisas é que não.)

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Nessa noite de passagem de ano de 2016 para 2017 fui mais comedido: não queria escrever um novo livro (já tinha dois, um deles prestes a sair). Queria, isso sim, escrever uma aventura que começasse precisamente naquele momento, naquela passagem de ano. Sorri, enquanto emborcava passas outra vez. Já tinha umas ideias a pairar enquanto o fogo de artifício se reflectia nas caras da minha família.
Assim, escrevi um texto em que um casal recebia um telefonema à meia-noite e havia de encontrar um baú numa ilha. Pensei em continuar a escrever em episódios. Um folhetim mesmo a sério. O título do tal episódio foi roubado a um verso de uma canção dos Azeitonas, com uma pequena adaptação: «O Tesouro que Roubámos aos Espanhóis». Reparei no verso porque uma vez, na rádio, ouvi uma versão ao vivo e toda a gente se punha a aplaudir quando a cantora falava dos tesouros que escondemos dos espanhóis. A canção chama-se «Nos Desenhos Animados (Nunca Acaba Mal)» e começa assim: «Eu quero a sorte de um cartoon / nas manhãs da RTP1».
E tive mesmo a sorte de aparecer numa manhã da RTP1. Enfim, não foi exactamente de manhã, pois já era hora de almoço. A razão foi esta: o tal segundo livro sobre a língua saiu para as ruas e a RTP1 fez uma reportagem, que assustou a minha avó Leonor, que nunca pensou ligar a televisão e ver o neto a divagar. Digo isto não por vaidade (bolas, eu até me arrepio de vergonha ao olhar para a reportagem!), mas porque essa aparição na televisão teve a sua importância nesta história toda (são cerejas, Senhor!).

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Não foi só a minha avó que me viu na RTP1. Também me viu Tó-Zé Correia, que era então presidente da Câmara Municipal de Peniche e rei nas horas vagas (já lá vamos). Ainda sem ter visto o livro, mas sabendo da sua estrutura — uma história de 2000 anos contada entre aventuras —, telefonou-me a dizer: tens de fazer o mesmo com a tua terra. Até já tenho — disse-me ele — a primeira personagem: Lúcio Arvénio Rústico, o comerciante de garum da Peniche romana que tinha tido a sorte de ter um forno descoberto e estudado por uma simpática equipa de arqueólogos (que, meses depois, eu viria a conhecer).
Fiquei logo com as mãos a arder. Desliguei o telefone, respirei fundo, sentei-me ao computador e desatei a escrever. Enfim, também tive o cuidado de perguntar ao editor se estaria interessado. Pelos vistos, sim. Tinha era de ser rápido. Dois meses…
Lembrei-me da história do início do ano. Era um possível arranque. Comecei a reescrevê-la, a investigar a história de Peniche, a imaginar aventuras, a rasgar papel (ou seja, a deitar ficheiros na reciclagem).

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Não é fácil imaginar histórias. Li muito, suei alguma coisa… Nas férias da Páscoa, fui visitar o meu irmão a Inglaterra e por lá terminei o livro — não foi mal pensado, porque também há ali muitos ingleses ao molho, como não podia deixar de ser. As ruas de Cambridge inspiraram-me (a distância nem sempre faz mal).
Com o livro terminado e enviado ao editor, respirei fundo. O livro lá passou pela maquinaria habitual, revisões, novas revisões, reescritas, escolha da capa, provas e finalmente o livro na mão. Na noite antes de ir para a gráfica, o editor telefona-me: o título tem de mudar! Não queremos roubar nada aos espanhóis! Tudo bem, pensei eu — mas como vingança há-de haver um deles que será engolido por uma baleia. Foi assim que apareceu A Baleia que Engoliu Um Espanhol, relato de muitas e rocambolescas aventuras do tempo dos romanos até hoje.

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Lembro-me de ter visto o livro pela primeira vez num dia de Maio de 2017, quando fui à editora, ali na Rua do Conde de Redondo. Quando saí do prédio tinha o livro na mão e lembro-me muito bem do percurso feliz até ao carro, que ficara longe, para os lados da Estefânia. Estava sol e tinha aventuras da minha terra dentro de um livro.
A primeira apresentação foi numa livraria lisboeta, onde apareceu o rei D. António, Prior do Crato, a desejar felicidades ao livro e a cumprimentar o Fernando Alvim, apresentador oficial. Houve quem dissesse que D. António era muito parecido com o Presidente da Câmara de Peniche. Condiz: afinal, esse nosso rei pouco mais governou que Peniche (está tudo contado no livro).

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A segunda apresentação foi — surpresa! — em Peniche, por Rogério Cação, numa noite em que conheci os arqueólogos que desencantaram a olaria do Lúcio Arvénio Rústico. O Rogério, infelizmente, já não poderá ter na mão a segunda edição. Falou dela — e falou bem, como sempre — numa noite do Verão de 2017, no Clube Recreativo de Peniche.
Foi precisamente aí onde, no ano seguinte, se organizou também o TEDxPeniche. Por essa altura, já o livro passara por muitas mãos, entre elas as do Pedro Reis, que organizava o TEDx (entre 1037 outras coisas). Contou-me depois que aquelas histórias o ajudaram a entrar em Peniche, por assim dizer. Ficou logo com umas ideias na cabeça. Em vez de me propor de imediato, porque não há razão para fazer uma coisa quando podemos fazer duas, o Pedro pediu à Ângela Malheiros, bibliotecária de Peniche, para me convidar para entrar no TEDxPeniche de 2019.
Gostei muito de participar, com umas quantas palavras sobre a tradução de «saudade». No fim, já tudo a arrumar a sala, o Pedro chegou-se ao pé de mim e disse que tinha uma proposta para me fazer. O tal livro de Peniche poderia ser a base de outro livro de Peniche. Cocei um pouco a cabeça, mas compreendi a ideia (achei eu).

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Combinámos uma conversa mais demorada em Janeiro (estávamos em Novembro, vinha aí o Natal, enfim, ninguém planeia arranques seja do que for em Dezembro — e já percebemos que esta história precisa do mês de Janeiro para avançar).
Combinámos numa certa pizzaria de Peniche cujo nome não me quero lembrar — não quero agora e não queria no dia, porque fui sentar-me à espera do Pedro e da Ângela noutra pizzaria de Peniche. Vá, sejam meiguinhos — escrevi um livro sobre a terra, não tenho de decorar as pizzarias todas!
Com trocas de SMS um pouco confusas, e tendo em conta que eu já pedira uma bela pizza, o Pedro e a Ângela abandonaram a pizzaria certa e vieram ter comigo à pizzaria errada.
Não faz mal. Conversámos, conversámos, planeámos então um livro para sair no Verão de 2020. Estávamos felizes e contentes nesse mês de Janeiro de 2020. Sim, claro! Haveríamos de ter uma segunda e espectacular edição do livro no Verão de 2020...
Foi então que coiso.

2...

Meses depois, entre confinamentos, máscaras, testes, aulas online e o mundo do avesso, mandei uma mensagem ao Pedro, como quem lança uma garrafa ao mar, a perguntar se não podíamos falar do projecto já não numa pizzaria errada, mas pelo Zoom. O Pedro ficou contente por eu ainda me lembrar de um projecto que tinha sido pensado tanto tempo antes (foram só três meses, mas que três meses).
Juntou-se uma equipa, começámos a ter reuniões semanais (acham que isto de fazer livros é fácil?) e a ideia começou a ganhar forma. Uma das reuniões foi no meu carro, onde levei o meu filho mais novo a passear para aliviar o confinamento. O Matias gostou tanto do projecto que não parou de gritar. A reunião correu bem (afinal, no Zoom, podemos silenciar-nos uns aos outros).

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Convidámos, a medo, o Rui Venâncio. Um historiador talvez não quisesse participar num projecto de um livro que (digamos assim) não se importa de torcer um pouco (poucochinho) a História em prol de uma boa história. Pois lá veio ele entusiasmado, nem que fosse para endireitar o que estava torto em tal romance. Também encontrámos o Hélio, que se pôs a desenhar. Ao lado do Pedro, temos a Riikka, a Andréa e a Tita. E a Ângela, claro. («E a Ângela, claro.» é frase que se acrescenta a quase todas as descrições de projectos que se fazem em Peniche.) No Verão de 2020, com máscaras e alguma distância, encontrámo-nos todos no pátio da biblioteca de Peniche, numa bela tarde. De lá para cá, mais vírus, menos vírus, não parámos de sonhar este livro de Peniche.
Recentemente, a Andréa criou a mais realista e deliciosa descrição de nós todos que alguma vez imaginei ler na página do nosso website: ilhadotesouro.pt. É só irem lá ver. O website só apareceu há poucas semanas. Já tivemos uma transmissão em directo sobre a história de Peniche. Já demos a volta a Peniche. Já pensámos e repensámos o título. Já fizemos uma apresentação à Câmara, que apoia o projecto. Também já temos o apoio da Thai, a empresa de conservas que mantém a tradição do Lúcio Arvénio Rústico — em moldes ligeiramente diferentes… Tivemos várias sessões de trabalho, incluindo uma certa manhã de Setembro de 2021 em que andámos à bulha para decidir o título (tinha de ter mais Peniche e menos baleia). Tantas conversas já tivemos e tanto aconteceu que já não há cerejas que expliquem isto.

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Estas cerejas todas hão-de dar origem ao novo livro: Peniche — Ilha do Tesouro. Há-de ser um livro de aventuras, em português e em inglês, com um guia histórico a acompanhar e ilustrações à la Júlio Verne, sem esquecer um mapa que há-de levar muita gente a percorrer a nossa terra com o livro na mão.
Será um livro que apetece tocar, um livro para levar na bagagem, um livro que torne a nossa cidade ainda mais inesquecível.
E depois deste virão outros, que os livros são como as conversas.



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